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Melgaço

Epidemia 1913: Quando Castro Laboreiro foi abandonada e viu a morte de frente

5 Abril, 2020 - 17:58

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PUB Estávamos nos últimos meses de 1913. A localidade de Castro Laboreiro, em Melgaço, vivia calma e pacata nos afazeres da altura. Subitamente, começaram a aparecer na freguesia casos de […]

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Estávamos nos últimos meses de 1913. A localidade de Castro Laboreiro, em Melgaço, vivia calma e pacata nos afazeres da altura. Subitamente, começaram a aparecer na freguesia casos de tifo epidémico. Um dos piores tipos de tifo, que é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii, transmitida pelo piolho do corpo.

Conforme conta Valter Alves, professor e entusiasta da história do concelho, no seu blog Melgaço, entre o Minho e a Serra, a doença rapidamente se propagou pela freguesia. As precárias condições de higiene ajudaram ao desastre provocado por um agente patogénico altamente contagioso.

Não. Não chegou ajuda. Nem foi montado qualquer cordão sanitário. Durante meses, Castro Laboreiro ficou entregue à sua sorte. Lá em cima, no alto da montanha, morriam pessoas. E cá em baixo, ninguém se atrevia a aproximar-se.

 

Ministros borrifaram-se para a situação

 

Só em janeiro do ano seguinte, em 1914, é que um sacerdote bateu com o punho na mesa e decidiu levar o assunto a Lisboa. A matéria foi abordada na Câmara dos deputados. Conforme apurou Valter Alves, os Ministros da altura não mostraram grande sensibilidade.

Castro Laboreiro sofria. Até que, no final desse mesmo mês de janeiro, chegou àquela vila uma equipa médica da Cruz Vermelha de Viana do Castelo para ajudar no combate à epidemia já instalada. Já se contabilizavam 60 mortos até esse momento. Dados citados pelo investigador referem que a epidemia estava a dizimar uma média de duas a três pessoas por casa.

O pessoal médico chegou exausto à vila. Eram tempos em que Viana do Castelo e Castro Laboreiro estavam separados por 145 quilómetros. Para chegar ao destino, a equipa demorou 12 horas! (sim, leu bem… doze horas). Foram recebidos como heróis. 

“A freguesia de Castro Laboreiro tem, segundo informações dadas pelo pároco, cinquenta quilómetros de área, dos quais quarenta são de raia seca, confinando com 11 freguesias espanholas e 3 portuguesas. Tem 3500 habitantes mas habitualmente só 2500 residem lá. Os restantes emigram para vários pontos em busca de trabalho. Este canto de Portugal é tudo quanto há de improdutivo, e a sua população é da mais atrasada e abandonada”, refere o relatório feito pela Cruz Vermelha.

 

Condições miseráveis

 

“A região somente produz centeio e batatas. O povo desconhece os mais rudimentares princípios de higiene, raríssimas vezes se lava, vive em promiscuidade com os animais em choupanas cobertas de colmo, sem compartimentos, todo o dia cheias dum espesso fumo, sob uma atmosfera irrespirável e dorme vestido num misto de idades e sexos sobre palha deitada numa espécie de masseira. As pessoas mais ilustradas da freguesia – o professor e quatro padres – em pouco desmancham este conjunto lastimoso”, escreveram os médicos.

A descrição não podia ser mais desoladora. Mas a Cruz Vermelha não baixou os braços. Estava declarada a guerra à epidemia que matava cada vez mais em Castro Laboreiro. O número de mortes diárias “era assustador”, conta Valter Alves.

Orientados pelo professor da freguesia, Mathias de Sousa Lobato, os médicos visitaram os enfermos. Os números eram preocupantes: dos 60 doentes visitados, 35 estavam atacados de febre tifóide, a quem foram ministrados os primeiros tratamentos.

 

Povo a levantar problemas… atrás de problemas

 

Mas tinham de ser tomadas medidas mais drásticas. Os infetados tinham de ser isolados e as habitações tinham de ser desinfetadas. Mas não era fácil, perante a profunda miséria em que aquela vila vivia. Não existia um único espaço condigno para servir de hospital.

Foi então que a Cruz Vermelha propôs levar os doentes para a capela da Boavista, nas proximidades daquela vila. O povo torceu o nariz à ideia e considerou que a instalação de um hospital na capela era uma ofensa a Deus. No entanto, conta o investigador, a população foi convencida de que “até a Virgem da capela abençoaria os doentes, motivo para que a cura fosse mais célere”. Funcionou.

O espaço era pequeno, mas sempre foi possível instalar sete dos doentes mais graves. Mas logo apareceu outro problema: as baixíssimas temperaturas que se faziam sentir. Os enfermos tiveram de ser novamente retirados da capela ou então morreriam de frio. Foram transferidos para casa, até porque já apresentavam melhorias satisfatórias.

 

Um hospital de campanha… e mais problemas

 

Passariam várias semanas até que o hospital de campanha fosse montado com todos os equipamentos necessários. Dotado de compartimentos para homens e mulheres, bem como para o pessoal de enfermagem e auxiliar, passou a ser um precioso equipamento para o combate à epidemia, que estava longe da sua definitiva erradicação.

O povo voltou a irritar-se. “Não faltaram manifestações de desagrado e agressivas oposições ao internamento de doentes. Valeu na circunstância a presença de agentes da Guarda Fiscal, que devidamente armados dissuadiram todos aqueles que preferiam ver os seus familiares em casa a permitir o seu internamento num espaço que lhes era estranho”, conta Valter Alves.

A chuva e os nevões eram outro obstáculo para os médicos que se viam impedidos de fazer visitas às habitações, por forma a tratar os doentes. Ou então, em casos extremos, transportá-los para o hospital de campanha “em macas em cima de mulas, por trajetos acidentados de longos quilómetros”.

 

Situação piorava – E uma vez mais… o povo

 

A situação ia de mal a pior. O povo tinha a convicção de que só morria quem tinha que morrer e que a morte deveria acontecer na casa de cada um. Foi então que a Cruz Vermelha ” notou que algumas pessoas tentaram ocultar casos de familiares enfermos para não serem internados. Só a denúncia de outros vizinhos foi ajudando a diagnosticar novos casos”.

 

Epidemia começa finalmente a parar

 

Só em Abril desse ano de 1914 é que a epidemia começou a perder força. Corria o dia 6 quando foi dada alta ao último doente que se encontrava hospitalizado. O hospital de campanha foi desmontado mas, apesar dos obstáculos causados pelo povo, a equipa da Cruz Vermelha [na foto com o hospital ao fundo] ficou rendida à ternura daquela gente.

“Ao despedirmo-nos deste povo rude mas muito bondoso, vimos olhos marejados de lágrimas e abraços estreitadíssimos que nos tributavam, certamente por terem reconhecido a dedicação com que foram tratados, através de tantos sacrifícios, todo os enfermos, apesar do seu elevado número, conforme se pode ver no seguinte resumo: epidémicos tratados em sua casa – 83; doentes hospitalizados – 12; doentes falecidos em casa – 12; doentes falecidos no hospital – 2; total de doentes curados – 81″, termina o último relatório da equipa médica.

No total, deste surto epidémico em Castro Laboreiro, registaram-se 76 mortos.

É evidente que a população de Castro Laboreiro e toda a vila de Melgaço em geral respirou de alívio. Aquele surto epidémico já lá ia e todos puderam regressar à sua vida normal. Mas o pior ainda estava para vir…. e esse pode lê-lo ou relê-lo clicando AQUI.

 

[Fotografia: Blog Melgaço, entre o Minho e a Serra / Valter Alves]

 

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