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Melgaço: Conheça a história da gente que desafiou Salazar para ter polvo no Natal

5 Dezembro, 2018 - 11:48

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É uma história de contrabando. De um tesouro que vinha da Galiza. Conta-nos a edição on-line da Notícias Magazine que, em tempos, Salazar tentou travar esta tradição para proteger a […]

É uma história de contrabando. De um tesouro que vinha da Galiza. Conta-nos a edição on-line da Notícias Magazine que, em tempos, Salazar tentou travar esta tradição para proteger a frota bacalhoeira. No entanto, o povo do Vale do Minho sempre arranjou maneira de fazer chegar ao prato este manjar que vinha lá de cima.

À Notícias Magazine, Albertino Gonçalves, professor de Sociologia na Universidade do Minho, referiu mesmo que o bacalhau da consoada não é, em boa verdade, uma tradição assim tão antiga. No final dos anos trinta, depois da Guerra Civil Espanhola e de uma tremenda escassez de alimentos nos dois lados da fronteira, o Estado Novo quis ordenar o abastecimento alimentar do país para travar a fome. “Salazar definiu zonas e produtos: cereais no Alentejo, sardinha nos portos pesqueiros, hortícolas e frutícolas no Oeste. E investiu seriamente na frota bacalhoeira, capaz de trazer das águas frias do Norte um ingrediente barato e altamente duradouro”, disse o investigador. “Nessas contas, o polvo, que vinha essencialmente de Espanha, não tinha lugar”.

 

Entrada de Melgaço vigiada pela Guarda Fiscal – [imagem cedida pelo Museu Memória e Fronteira]

 

 

Melgaço desafiava o Estado Novo

 

O bacalhau nascia da vontade política, mas o Município mais a norte de Portugal teimava em resistir ao menu imposto pelo fascismo. Na maioria das vezes, conta-se, foi o jogo do gato e do rato.  Avelino Fernandes, 69 anos, era guarda-fiscal em São Gregório, freguesia de Melgaço. “Em novembro e dezembro já se sabia que aumentava o contrabando de polvo. Éramos 32 guardas e reforçávamos a vigilância nesta altura”, conta à Notícias Magazine.

Muitos deles eram homens da terra e na maior parte dos casos fechavam os olhos à passagem do repasto natalício. “O problema era a PIDE, que andava sempre em cima de nós para controlarmos o polvo. Eram maus como as cobras, eram capazes de deixar uma família sem ceia na consoada para cumprir aquilo que o Salazar queria”, contou. A sua memória preferida de quase quatro décadas naquele ofício foi o dia em que prenderam os agentes da polícia política, em abril de 1974.

 

“Em novembro e dezembro já se sabia que aumentava o contrabando de polvo. Éramos 32 guardas e reforçávamos a vigilância nesta altura”

 

António Domingues, 84, concorda. Era apalpador na alfândega, revistava os homens que passavam pelo posto fronteiriço, vindos da Galiza. “As pessoas arranjavam mil e uma maneiras de disfarçar a entrada de mercadoria. Traziam coletes encostados ao corpo, camadas falsas de roupa, tudo o que se conseguisse imaginar. Mas, na altura do Natal, não precisava de tocar em ninguém. Se alguém trazia polvo, eu topava-o pelo cheiro”, recordou.

 

Edifício da alfândega de São Gregório era um dos postos de fronteira de Melgaço [Fotografia: Gonçalo Delgado]

 

Há em Melgaço um museu chamado Memória e Fronteira onde se presta homenagem às décadas em que a passagem para Espanha era atividade furtiva. Ao contrabando, mas também à emigração. Os arquivos das apreensões pela Guarda Fiscal estão ali guardados – e basta olhar para os registos para perceber como o polvo era importação da quadra.

“Quando chegava a altura do polvo tínhamos de ter cuidados redobrados, por causa do cheiro que largava», conta agora numa cumeada em frente ao rio. Era por ali que passavam o produto e o escondiam em covas no chão. “Mas não podia ficar muitos dias, senão a Guarda dava por ele”, contou à Notícias Magazine Amadeu Pereira, de 83 anos. O molusco era contrabando em movimento constante.

 

“Só andávamos de noite, e sempre em silêncio. De dia dormíamos no meio do bosque”

 

A passagem fazia-se entre as duas e as três da manhã, “hora em que até as pedras dormem”. Cada pessoa com 40 quilos de polvo seco atados por um cordel, e às vezes eram mais de uma vintena a tentar cruzar o rio. “Tínhamos uma barca afundada com uma pedra, que puxávamos por uma corda para trazer o produto para Portugal. O primeiro passava sempre sem carga, não fosse a Guarda estar à espreita. Se fosse apanhado gritava que andava ali raposa e voltávamos todos para o mato. Se estivesse livre, atirava três pedras para a água a anunciar que o caminho estava livre. Era o sinal”.  O caminho para ir buscar o polvo era longo, 30 quilómetros pelo meio do mato, que na estrada podiam ser apanhados pela Guardia Civil. “Só andávamos de noite, e sempre em silêncio. De dia dormíamos no meio do bosque”. O abastecimento fazia-se no armazém de um antigo merceeiro galego, no lugar do Couto.

Nas aldeias de Melgaço, hoje toda a gente conta a mesma história. O polvo chegava seco e pendurava-se atrás da porta. Dois dias antes do Natal juntava-se o mulherio nas fontes e mergulhavam-no na água. Depois, era agarrá-lo pela cabeça e batê-lo numa pedra, pelo menos cinquenta vezes.

 

[Fotografia de capa: Vortex Magazine]

 

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