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Melgaço: ‘Jovem’ de 90 anos soma admiradores com poesia e memória impressionante

5 Junho, 2018 - 11:25

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“Mantenho sempre a cabeça a trabalhar. Sempre ocupada”. Com um sorriso enorme, Virgínia Ferreira mostrava-nos com orgulho os seus escritos ao longo das últimas décadas. Ora se sentava, ora se […]

“Mantenho sempre a cabeça a trabalhar. Sempre ocupada”. Com um sorriso enorme, Virgínia Ferreira mostrava-nos com orgulho os seus escritos ao longo das últimas décadas. Ora se sentava, ora se levantava do sofá com uma agilidade incrível. E nós, a puxar pela ferrugem, a tentar acompanhar esta jovem melgacense ainda com 90 anos de idade. “Quando tinha 18 anos, eu tinha um primo em Lisboa que era diretor do jornal O Mundo Desportivo. Era uma pessoa muito inteligente. Escrevia muito! Nesse tempo estava o Fernando Peça na BBC de Londres”, contava a Dnª Virgínia com uma memória fotográfica que, ao longo desta história, nos deixaria ainda mais boquiabertos. “O meu primo gostava muito de escrever sobre as Termas do Peso, mas conhecia muito pouco de Melgaço. Pediu-me então para o ajudar”. A jovem Virgínia assim fez. Começou a ser elogiada e percebeu que tinha talento para a escrita.

Dois anos depois, chegou o casamento. “A vida modificou-se completamente. Tive filhos. Trabalhava como comerciante de manhã à noite sem horários”, recordava. E o tempo para escrever começava a ser cada vez menos. A esferográfica acabou mesmo por ficar arrumada de vez num canto. Só que aos 56 anos de idade, o luto abateu-se sobre a vida desta melgacense. “Fiquei viúva e entregue a um desgosto profundo. Não havia nada que me animasse! Não dormia… e durante o dia estava sempre triste”. Chegou então aquela noite em que, já de madrugada, Virgínia sentou-se na cama. Começou a escrever. Brotou poesia. E nunca mais parou. Virou-se para a prosa… e para um romance que chamou de O Reencontro.

 

 

A Guerra e a fome em Melgaço

 

Virgínia consegue recordar cada dia da sua vida como se fosse ontem. Literalmente. Desafiámos a nonagenária a recuar aos tempos da II Guerra Mundial. “Melgaço estava muito mal. Passou-se muita fome. Tinha havido a Guerra Civil em Espanha, que ficou completamente destruída. Foi uma guerra que começou em 1936 e acabou em 1939″, disse-nos em tom professoral. Com uma lucidez e um conhecimento de História de fazer inveja. “A II Guerra rebentou nesse ano e foi até 1946. Foi muito mau! Não havia nada nas mercearias. De vez em quando lá vinha alguma coisa, mas os comerciantes não nos podiam vender sem que tivéssemos uma senha que tínhamos de ir buscar ao presidente da Junta”. Os olhos de Virgínia Ferreira brilhavam. Como que mergulhados nesses tempos mais negros de um país e de um mundo encobertos pela escuridão. “Passou-se muita fome! Um dia cheguei a ver aqui em Melgaço uma mãe com uma cesta de milho para semear no campo. Ao lado caminhava uma criança a chorar e a suplicar: «Mãe, não ponhas o milho na terra! Faz pão para comermos!»“.

 

 

O luxo das Termas e o flagelo da emigração clandestina

 

Nas décadas de 40 e 50 do século passado, conta-nos Virgínia Ferreira, as Termas do Peso viveram páginas de ouro. Eram frequentadas por gente das mais altas sociedades de todo o mundo. Dos mais afortunados até aos incrivelmente milionários e com os caprichos mais estranhos. “Naquele tempo as praias não estavam na moda. Eram mais as Termas! Vinham aí duas senhoras… as Senhoras Moutinhas, de Lisboa, que traziam um cão muito grande, num grande carrão com motorista fardado”, descreveu. “O cão dormia no quarto delas no Hotel Ranhada. Os empregados até iam ao quarto servir a refeição ao animal, que não podia sentar-se à mesa. E o motorista é que dava banho todos as manhãs ao cão”. A memória de Virgínia Ferreira não falhava.

Mas os menos afortunados, leia-se a maior parte da população, tinham também acesso às Termas. “Havia lá umas funcionárias com uns copinhos próprios para dar-nos de beber. Mas não mais que isso. Se quiséssemos uma garrafa, tínhamos de a comprar”, apontou a nonagenária.

Seguiram-se depois tempos muitos duros para Melgaço com a emigração clandestina. “Foi terrível!”, avaliou a poetiza que nos leu alguns versos que a própria escreveu sobre este tema. “A década de sessenta corria/No nosso país havia gente com muita necessidade/A vida era-lhes muito dura/O nosso regime era a ditadura, e não havia liberdade… As pessoas que queriam emigrar para da miséria se livrar/Não o podiam fazer/Não conseguiam autorização para sair da nossa nação/E na miséria tinham que viver”.

 

 

Dos dias felizes

 

Chegou, por fim, o dia da liberdade. “Levantei-me de manhã e fui para a loja. Ia sempre as 7 da manhã para distribuir o pão para as mães darem o pequeno-almoço às crianças antes de irem para a escola”, prosseguiu com uma memória precisa. Ao detalhe cirúrgico. “Chegou então um senhor já idoso que me disse que se estava a passar um caso muito grave em Lisboa. Diziam no rádio para as pessoas não saírem à rua porque podiam correr perigo”. Mas tudo acabou como a História nos conta vezes sem conta.

Aos 90 anos de idade, Virgínia Ferreira é hoje uma mãe, sogra e avó feliz. Terminou recentemente de escrever O Reencontro. E a família inteira fez-lhe uma grande surpresa. Publicou o livro e foi realizada uma autêntica cerimónia de lançamento nas Termas do Peso com direito a sessão de autógrafos. Emocionada, Virgínia Ferreira garantiu-nos que pretende continuar a escrever e a bordar até onde a saúde permitir. “Vou juntando tudo em cadernos. Depois os meus filhos, que são muito meus amigos, que façam o que quiserem. Tem aí muita bagagem para isso”, concluiu com uma gargalhada.

Virgínia Ferreira foi a convidada da edição desta semana do programa Radiografia da Rádio Vale do Minho, transmitido esta segunda-feira. Volta a repetir esta quarta-feira, às 22h00. 

 

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